terça-feira, 14 de junho de 2011



QUANDO,NO ESPIRITO SANTO,SE RECEBEU UMA RELIQUIA DAS ONZE MIL VIRGENS DE JÓSE DE ANCHIETA
Diabo - Temos embargos, donzela
a serdes deste lugar.
Não me queirais agravar,
que, com espada e rodela,
vos hei de fazer voltar.
Se lá na batalha do mar
me pisastes,
quando as onze mil juntastes,
que fizestes em Deus crer,
não há agora assim de ser.
Se, então, de mim triunfastes,
hoje vos hei de vencer.
Não tenho contradição
em toda a Capitania.
Antes, ela, sem porfia,
debaixo de minha mão
se rendeu com alegria.
Cuido que errastes a via
e o sol tomastes mal.
Tornai-vos a Portugal,
que não tendes sol nem dia,
senão a noite infernal
de pecados,
em que os homens, ensopados,
aborrecem sempre a luz.
Se lhes falardes na Cruz,
dar-vos-ão, mui agastados,
no peito, com um arcabuz.
(Aqui dispara um arcabuz.)
Anjo - Ó peçonhento dragão
e pai de toda a mentira,
que procuras perdição,
com mui furiosa ira,
contra a humana geração!
Tu, nesta povoação,
não tens mando nem poder,
pois todos pretendem ser,
de todo seu coração,
inimigo de Lucifer.
Diabo - Ó que valentes soldados!
Agora me quero rir!...
Mal me podem resistir
os que fracos, com pecados,
não fazem senão cair!
Anjo - Se caem, logo me levantam,
e outros ficam em pé.
Os quais, com armas da fé,
te resistem e te espantam,
porque Deus com eles é.
Que com excessivo amor
lhes manda suas esposas
- onze mil virgens formosas -,
cujo contínuo favor
dará palmas gloriosas.
E para te dar maior pena,
a tua soberba inchada
quer que seja derrubada
por uma mulher pequena.
Diabo - Ó que cruel estocada
me atiraste
quando a mulher nomeaste!
Porque mulher me matou,
mulher meu poder tirou,
e, dando comigo ao traste,
a cabeça me quebrou.
Anjo - Pois agora essa mulher
traz consigo estas mulheres,
que nesta terra hão de ser
as que lhe alcançam poder
para vencer teus poderes.
Diabo - Ai de mim, desventurado!
(Acolhe-se Satanás.)
Anjo - Ó traidor, aqui jarás
de pés e mãos amarrado,
pois que perturbas a paz
deste pueblo sossegado!
Diabo - Ó anjo, deixa-me já,
que tremo desta senhora!
Anjo - Com tanto que te vás fora
e nunca mais tornes cá.
Diabo - Ora seja na má hora!
(Indo-se, diz ao povo:)
Ó, deixai-vos descansar
sobre esta minha promessa:
eu darei volta, depressa,
a vossas casas cercar
e quebrar-vos a cabeça!

II
Vila - Mais rica me vejo agora
que nunca dantes me vi,
pois que ter-vos, mereci,
virgem mártir, por senhora.
O Senhor onipotente
me fez grande benefício,
dando-me aquela excelente
legião da esforçada gente
do grande mártir Maurício.
Neste dia
se dobra minha alegria
com vossa vinda, Senhora.
E, pois a Capitania
hoje tem maior valia,
mais rica me vejo agora.
Com a perpétua memória
de vossa mui santa vida
e da morte esclarecida,
com que alcançastes vitória,
morrendo sem ser vencida,
serei mais favorecida,
pois vindes moram em mim.
Porque, tendo-vos aqui,
fico mais enriquecida
que nunca dantes me vi.
Da Senhora da Vitória,
"Vitória" sou nomeada.
E, pois sou de vós amada,
de onze mil virgens na glória
espero ser coroada.
Por vós sou alevantada
mais do que nunca subi,
para que, subindo assim,
não seja mais derrubada,
pois que ter-vos mereci.
Meus filhos ficam honrados
em vos terem por princesa,
porque, de sua baixeza,
por vós serão levantados
a ver a divina alteza.
Tudo temos,
pois que tendo a vós, teremos
a Deus, que convosco mora,
e logos, desde esta hora,
todos vos reconhecemos,
virgem mártir, por Senhora.
Um companheiro de São Maurício
vem ao caminho à virgem, e diz:
Toda esta Capitania,
virgem mártir gloriosa,
está cheia de alegria,
pois recebe, neste dia,
uma mãe tão piedosa.
Nós somos seus padroeiros,
com toda nossa legião
dos tebanos cavaleiros,
soldados e companheiros
de Maurício Capitão.
Ele espera já por vós
e tem prestes a pousada
para, com vossa manada,
serdes, como somos nós,
deste lugar advogada.
Úrsula - Para isso sou mandada.
E com vossa companhia,
faremos mui grossa armada,
com que seja bem guardada
a nossa capitania.
III
Ao entrar da igreja, fala São Maurício com são Vital, e diz:
Maurício - Não bastam forças humanas,
não digo para louvar,
mas nem para bem cuidar
as mercês tão soberanas
que, com amor singular,
Deus eterno,
abrindo o peito paterno,
faz a todo este lugar,
para que possa escapar
do bravo fogo do inferno,
e salvação alcançar.
Ditosa capitania,
que o sumo Pai e Senhor
abraça com tanto amor,
aumentando cada dia
suas graças e favor!
Vital - Ditosa, por certo, é,
se não for desconhecida,
ordenando sua vida
de modo que junte a fé
com caridade incendida.
Porque as mercês divinais
então são agradecidas
quando os corações leais
ordenam bem suas vidas
conforme as leis celestiais.
Maurício - Bem dizeis, irmão Vital,
e, por isso, os sabedores
dizem que obras são amores,
com que seu peito leal
mostram os bons amadores.
Vital - E destes, quantos cuidais
que se acham nesta terra?
Maurício - Muitos há, se bem olhais,
que contra os vícios mortais
andam em perpétua guerra,
e guardando, com cuidado,
a lei de seu Criador,
mostram bem o fino amor
que têm, no peito encerrado,
de Iesu, seu Salvador.
Vital - Estes tais sempre terão
lembrança do benefício
de terem por seu patrão,
com toda nossa legião,
a vós, Capitão Maurício.
Maurício - Assim têm.
E, por isso, o sumo bem
lhes manda aquelas senhoras
onze mil virgens, que vêm
para conosco, também,
serem suas guardadoras.
Vital - Tão gloriosas donzelas
merecem ser mui honradas.
Maurício - E conosco agasalhadas,
pois que são virgens tão belas,
de martírio coroadas!
Recebendo a virgem, diz:
Úrsula, grande princesa,
do sumo Deus mui amada,
boa seja a vossa entrada,
grande pastora e cabeça
de tão formosa manada!
Úrsula - Salve, grande Capitão
Maurício, de Deus querido!
Este povo é defendido
por vós e vossa legião
e nosso Deus mui servido.
Sou dele agora mandada
a ser vossa companheira.
Maurício - Defensora e padroeira
desta gente tão honrada,
que segue nossa bandeira.
Nós deles somos honrados,
eles guardados de nós.
Porque não sejamos sós,
serão agora ajudados
conosco também, de vós.
Úrsula - Se os nossos portugueses
nos quiserem sempre honrar,
sentirão poucos reveses.
De ingleses e franceses
seguros podem estar.
Vital - Quem levantará pendão
contra seis mil cavaleiros
de nossa forte legião,
e contra o grande esquadrão
de vossos onze milheiros?
Úrsula - Os três inimigos da alma
começam a desmaiar.
E, pois tem este lugar
nome de Vitória, e palma,
sempre deve triunfar.
Vitória - Isso é o que Deus quer.
Guardem eles seu mandado,
que nós teremos cuidado de guardar e engrandecer
este nosso povo amado.
Se quereis
aqui ficar, podereis.
Nem tendes melhor lugar
que aquele santo altar
no qual, conosco, sereis
venerada sem cessar.
Úrsula - Seja assim!
Recolhamo-nos aí,
com nosso senhor Jesus,
por cujo amor padeci,
abraçada com a cruz
em que ele morreu por mim.
Levando-a ao altar, lhe cantam:
Entrai ad altare Dei,
virgem mártir mui formosa,
pois que sois tão digna esposa
de Jesus, que é sumo rei.
Naquele lugar estreito
cabereis bem com Jesus,
pois ele, com sua cruz,
vos coube dentro no peito.
Ó virgem de grão respeito,
entrai ad altare Dei,
pois que sois tão digna esposa
de Jesus, que é sumo rei.

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